Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos) Bernardo Soares, O livro do Desassossego


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quinta-feira

O Sr.Pereira está ali para cumprir uma função. Não veio a passeio. A verdade é que detesta este tipo de incumbência. Parece que lhe sai sempre a ele este tipo de missão. Não é fácil. O que tem para comunicar é grave, penoso e inadiável.
Mandaram-no entrar, sentar-se, ficar à vontade.
O Sr.Pereira não veio fazer sala, não tem que ficar à vontade.
Perguntaram-lhe se aceitava uma água, um chá, um café.
Está tudo muito bem assim, mas o café sempre ajudava. Não teve tempo de tomar o pequeno-almoço, é homem sózinho, trata de si, por vezes esquece-se de si. E o emprego tem hora certa de se entrar, não quer saber dessas coisas de se ser sózinho ou acompanhado. Ainda mais com esta visita, não podía de todo atrasar-se.
Deixaram-no na sala, consegue ouvir ao longe os ruídos de louça.
Imagina que com o café venha uns biscoitos. As bolachas de manteiga são as suas favoritas.
O tempo parece que pára quando se está à espera. Ainda mais à espera para depois comunicar tal noticia. Ainda bem que o café lhe vai ser servido antes de a transmitir. Provavelmente não lho serviríam. Ou pior, vingar-se-íam de alguma forma. Bem capaz de lhe cuspirem no café. Ou até mesmo agora. Não, agora não. Não sabem que tipo de noticia é que lhes vai dar. E depois, também não parece coisa deste género de pessoa. A casa é modesta, é certo, mas limpa. Nem se lembraría de tão nojento acto. Cuspir. No café que havería de beber. Vai beber.
Que demora. Tanto tempo para fazer um cafézinho.
Se não vierem bolachas de manteiga não come nenhumas. Sabe-se lá de onde vieram.
Inspira profundamente.
Há um cheiro estranho.
Endireita-se. Ficou mais forte o cheiro. Cheira mal.
Apura as narinas. Não é a café que cheira. Tem a certeza absoluta. Cheira cada vez mais. Quanto mais dobra o tronco na direcção dos joelhos mais intenso fica o cheiro.
Cheira a merda. Descobriu.
Baixa os olhos na direcção dos sapatos polidos. Agarrado de lado no sapato direito tem fezes de cão.
Levanta-se.
Ergue a perna. No tapete alguns pedaços caídos. Exactamente no sitio onde lhe havíam oferecido assento e que ficasse à vontade. E onde espera que lhe tragam o café, de preferência acompanhado de bolachas de manteiga.
Desespera-se.
Esfrega com toda a força o sapato, de lado, de biqueira, de calcanhar, depois em viés, talvez assim acame o empecilho nas fibras do tapete, afaste os pequenos pedaços que se esboroam, disfarce o mau cheiro que empesta toda a sala.
Finalmente o tabuleiro com o café. Não há bolachas de manteiga, só pão e um pote de doce muito amarelo e brilhante.
O Sr. Pereira não brinca em serviço. Leva a mão ao bolso interior do casaco e retira decidido a ordem de despejo.
Pega na pasta, dá os bons-dias e avisa que a casa deverá ser entregue limpa.
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