Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos) Bernardo Soares, O livro do Desassossego


.
.
.

sexta-feira

A mim ninguém me cala.
Nem me enganam. Basta olhar para alguém uma única vez e sei logo o que se pode esperar.
Experiência de vida. Espirito observador.
Apercebo-me rapidamente quando contam mentiras, quando disfarçam, quando distorcem a realidade. É como que um sexto sentido. Podem aldrabar muita gente mas a mim não me compram.
É por isso que quando falam comigo já sabem que não vale a pena virem contar estórias da carochinha que lhes digo logo. E quando não lhes digo logo, trato de arranjar maneira de eles entenderem que não me enganaram. Numa próxima oportunidade.
Ou então deixo-os aflitos. A remoer. Eles percebem logo que eu sei tudo.
É fácil.
Basta dizer-lhes o que acho. Mas dizendo-lhes que foram outras pessoas que me vieram contar.
Não têm maneira de provar que sou eu que penso assim. E por outro lado ponho-os logo no lugar deles.
Não me enganam.
Quero ver eles dizerem-me na cara que aquilo que eu ouvi e que até lhes faço o favor de contar não é verdade. Que é da minha autoria e que estou a inventar pela boca de outros.
A mim ninguém me cala. Sou muito frontal, o que tenho a dizer digo logo.
Esta é que é a verdade verdadinha.
.
.
.
.

quinta-feira

Avisei.
Bastas vezes.
Uma completa e tremenda falta de educação. E principios. Há que respeitar o espaço de cada um.
Ordenadamente. Civicamente.
Tentei a aproximação civilizada, falei, expliquei a situação e as consequências.
Nada.
Tudo se repetiu nos fins de semana.
Deixei uma pequena nota na caixa do correio. Duas. Três, quatro.
Nada, voltou o barulho infernal do rádio do carro, as aceleradelas antes de desligar a ignição, a porta do prédio a bater com toda a força.
Uma falta de consideração.
Às quatro, cinco da manhã. Quando o sono dos justos se concilia até ao erguer para se cumprir o seu dever de cidadão.
Das vezes seguintes apelei às forças de segurança.
Pago os meus impostos, tenho direito a que zelem pelo meu sono.
Mas só vieram por duas vezes. Ocupados a prenderem ladrões, desculparam-se.
Por isso deixei de avisar.
Tirei-lhe o sono como ele mo tirou aos fins de semana pela madrugada.
Ninguém me pode acusar que não tenha sido paciente.
Tão paciente que esperei por ele uma noite inteira, cheio de frio, no vão do prédio, para lhe impedir os pneus do carro voltarem a rolar para outros fins de semana.
.
.
.