Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos) Bernardo Soares, O livro do Desassossego


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quarta-feira

E a chuva sem parar. Mais um dia de chuva a dar por derrotado todo e qualquer plano. Não há-de vir ninguém com esta chuva, nunca apetece saír. Chato. As estufas, quando é que se poderão abrir as estufas, tanto trabalho de tantos meses para isto. Dinheiro parado, dinheiro perdido. Bem, seja o que Deus quiser, parece que quer chuva. Devía tê-la mandado no tempo dela, agora é excessivo, uma fartura que só estraga e aborrece.
Ainda bem que não vem ninguém.
Com este tempo íam chegar todos enlameados, sujam tudo, a entrada, o living, tudo. Não é deles, não lhes custa, deve ser por isso que em vez de seguirem pelo trilho vêm junto aos canteiros. Não querem saber, arrancam as poucas rosas que têm sobrevivido a este tempo e não querem saber.
Ainda bem que não vem ninguém.
Devíam ter avisado que não vinham, evitavam o levantar cedo, os preparativos na cozinha. Tanta comida, dinheiro empatado. Tem que se congelar tudo. Em pequenas porções, é assim que deve ser feito, não basta pôr no frio, se está de chuva é bem provável que cheguem as trovoadas e depois já se sabe. Azeda tudo, um desperdicio.
E a chuva que não pára.
Já não vem ninguém.
Sería uma excelente oportunidade para pôr a leitura em dia, nunca há tempo. Mas não apetece, é a chuva, a chuva põe as pessoas assim. Sem determinação para muita coisa, para saír de casa por exemplo.
Se tivessem vindo, o tempo estaría ocupado com elas não com outros afazeres ou leituras. Talvez se afastassem das rosas se houvessem cartazes a avisar para não as colher. Esta sería uma boa altura para fazer esses avisos, pô-los junto aos canteiros. E ainda um outro a dizer para seguirem pelo trilho. Mesmo em tempo seco, mesmo sem ser a época das rosas. Já ficava. Para os dias de calor. O pó. Entra por todos os lados, assenta.
O pó e a chuva. Cada um a seu modo fazem estragos. Acabam por ser semelhantes.
Será que há alguém com coragem suficiente para se atrever a saír de casa com esta chuva?
Com os cartazes perde-se o ímpeto de arrancar as rosas, pisar fora do caminho marcado.
Chato.
Ser-se apanhado em transgressão. Mesmo ao pé dos avisos de proibição.
Pelo menos com esta chuva não há ninguém para estragar os canteiros e entrar de botas enlameadas. Do mal o menos. Pior é o dinheiro perdido do dia, a comida, as estufas. A falta de ânimo.
Não há-de vir ninguém, é certo.
Com este tempo e o tempo que já passou desde a hora habitual de chegarem é porque já não vêm.
Tanto melhor.
Adia-se o frete. Com esta chuva não há vontade de aguentar fretes. São tarefas, obrigações. Mas não deixam de ser fretes. Especialmente num dia como o de hoje.
Parece que vem lá alguém. Não. Sim, sim, vem mesmo. Chato. Devería chover o dobro do que a que cai. Isto já não são horas de aparecer. Vem fora dos trilhos. Não. Não, não, não. A rosa mais bonita. Agora não há nada a fazer.
- Entre! Venha para dentro, fuja desta chuva! Que tempo, hein?! Ainda bem que veio! Tenho um enorme prazer em recebê-lo na quinta! Mandei preparar uns acepipes...
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