Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos) Bernardo Soares, O livro do Desassossego


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sexta-feira

Logo que lhe telefonou soube que tería que prometer. Embora não quisesse. Só quería trocar meia dúzia de palavras. Ouvir que ela quería conhecê-lo. Pela enésima vez. Só lhe ligava quando mais ninguém o atendía. Já sabía de antemão que a contrapartida era aquele pedido para marcar a data do encontro. E encontros não quería mesmo. Só aquelas frases que o consolavam e fazíam sentir desejado. Especial. Único. Nisso ela era mesmo boa. Tinha frases certeiras. Boas de se ouvir. Muito igual ao efeito que um chapéu de chuva tem quando chove e não há abrigo.
Uma necessidade.
Prometeu mais uma vez o encontro para um futuro próximo.
Mas ela não se contentou.
Exigiu.
Pediu o dia e a hora.
Ele disse.
Pensou que dizer não era estar. Quando chegasse o dia avisaría que não podía ir. Ou outra desculpa. Ou iría e se não gostasse do aspecto dela desaparecería de fininho sem dar as caras. Ela aborrecida não voltaría a pedir mais encontros. Acabavam-se os pedidos. As promessas. A obrigação de dizer um dia.
Afinal só se conhecíam de fotografia tipo passe.
E isso qualquer um pode arranjar a que quiser.
Decidiu que tería de vez de resolver o assunto.
Logo havería de achar outro guarda-chuva se este não servisse mais.
Ou não. Talvez fosse melhor ao vivo do que na fotografia. A fotografia não o entusiasmava por aí além. Normal. Mas a realidade é sempre diferente.
Também não lhe tinha enviado uma fotografia sua. Tinha arranjado a dum tipo bem parecido. Com o cabelo todo. Sem a proeminência do abdómen. Com mais uns centímetros de altura. Sem os anos todos que efectivamente tinha.
Logo que desligou ficou certo que não podería ir.
Nunca mais lhe ligaría.
Nunca mais a atendería quando ela ligasse.
Tinha tido o seu tempo de uso.
Por isso nunca chegou a saber que ela não compareceu ao encontro.
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