Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos) Bernardo Soares, O livro do Desassossego


.
.
.

sábado

Ele é um bom cidadão. Cumpridor. Paga os seus impostos, deita o lixo separado nos receptores coloridos destinados à reciclagem, não bate com a porta do edificio onde habita e não faz ruído depois das vinte e duas horas. Só atravessa nas passadeiras e nos sinais quando emitem luz verde mesmo que não haja trânsito.
 
Esta noite interrompeu o jantar para atender o funcionário do Censos.
 
Convidou-o a entrar mas aquele recusou, entregando-lhe a papelada e apressadamente deu-lhe as informações de carácter geral para o preenchimento. Há mais gente para visitar. Muito trabalho. Combinaram dia e hora para a recolha dos papéis. Qualquer dúvida ficará para esse dia. Nesse dia haverá tempo. Hoje não. Não esta noite, que é só para entregar os impressos e explicar o que fazer.
 
Voltou para o jantar. Frio.
 
Na televisão aconselham ao bom acolhimento dos funcionários do Censos. Do trabalho que fazem. Ele sente-se feliz por ter sido simpático. Por ter interrompido o jantar. Agarra a papelada e inicia a sua leitura e preenchimento. Algumas dúvidas, hesitações, não tem certeza se será assim ou não, melhor deixar para falar com o funcionário no dia combinado.
 
No dia marcado decidiu esperar pelo encontro e só jantar após. Tem hora marcada, não há como errar. Tem os impressos prontos, preparou um tabuleiro com refrescos e umas bolachas, vai convidar o funcionário para entrar.
 
A hora passou e ainda mais meia e só depois apareceu o funcionário do Censos. Ele está um pouco aborrecido. Ele é cumpridor, espera que o sejam consigo. Convida o outro a entrar que se nega. Muito trabalho. Muita gente para visitar. Dúvidas? Umas quantas. Mas a luz da escada é um aborrecimento, sempre a apagar e o tempo que se perde, melhor entrar aqui no hall.
 
Cruzes na folha, mais uma aqui, escreve na outra e o funcionário que não tira os olhos da caixa da electricidade onde está um autocolante do partido, como é que isto lhe foi escapar Santo Deus! Capaz de fazer algum reparo especial na folha do Censos sem ele saber, ficar marcado num registo secreto, vir a policia especial, sabe-se lá! Será que ele viu mesmo o autocolante do partido?! Como está a Mona Lisa por cima... Melhor acabar com isto e pô-lo a andar, muito trabalho, muita gente para visitar.
 
Um passou-bem valente e com a palma da mão esquerda amparou-se ao autocolante desejando muitas felicidades ao funcionário do Censos.