Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos) Bernardo Soares, O livro do Desassossego


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sábado

De indicador torcido chamou-o. Por cima dos óculos de ver ao perto. Insistiu. Silenciosamente.
O outro entendeu que não podía escapar-se e obedeceu.
De cabeça ligeiramente tombada à direita. As mãos suadas num aperto. Pousadas frente aos genitais. Recebeu as instruções sem comentários. No final apoiou a ponta dos dedos no tampo da secretária. Mas rápido recolheu o gesto perante o olhar do seu locatário.
Afastou-se.
Da sua secretária efectuou um telefonema. Depois rodou o tronco na direcção do homem que o chamara e fez-lhe um aceno consentido de cabeça. O outro compôs os óculos de ver ao perto.
Na 3ª fila de secretárias um homem sentado de tez amarela recebe um telefonema. Não diz nada. Desliga o telefone sem ruído. Levanta-se. Anda até ao final da sala. Fala baixo com a mulher que está sentada à secretária.
Ela ergue-se impetuosamente.
A cadeira onde estava sentada tomba com estrondo.
Todos se viram na direcção do barulho.
A mulher fala alto, gesticula, chora, faz perguntas.
Ninguém lhe responde. Nem mesmo o homem que está defronte da sua secretária.
Ela empurra-o para o lado.
Caminha apressada.
Dirige-se ao homem de óculos de ver ao perto.
Antes de aí chegar ele tira os óculos de ver ao perto, guarda-os no bolso do casaco e sai da sala.
A mulher fala ainda mais alto.
Depois um grande silêncio.
Todos retomaram o trabalho sentados, calados e virados para a frente.
A mulher faz perguntas e ninguém parece ouvi-la.
Corre para a secretária do homem que sua das mãos.
Ele aponta para o homem de tez amarela.
Ela chama o nome desse homem.
Ele aponta para a secretária do homem que saíu.
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1 comentário:

marisa disse...

gosto, não das cobardias, mas da forma como são contadas.
marisa