Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos) Bernardo Soares, O livro do Desassossego


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terça-feira

Conhecem-se há muito tempo.
Sempre se sentiram bem na companhia um do outro.
Partilham gostos comuns, têm a mesma noção da vida. São ambos livres e desimpedidos, independentes economicamente. Saiem habitualmente duas vezes por semana. Uma para um programa cultural, outra para jantar. Sabem os dois que é mais que uma amizade, mas nunca conversaram sobre o assunto.
Ela espera ansiosamente que ele avance. Dê o primeiro passo nessa direcção.
Ele receia que se levar o assunto por esse caminho, ela se ofenda e  perca a companhia que lhe é tão cara.
Esta semana, no dia do jantar, ela inadvertidamente e no calor da narrativa, segurou-lhe a mão.
Ele, surpreendido pelo gesto, retirou-a.
Ela tomou a atitude como um acto de repulsa.
Pediu-lhe desculpas e lamentou-se pelo resto da noite.
Ele não quis aceitar as explicações dela e disse que quem tinha que se retratar era ele, pela sua postura inaceitável.
Envergonhados os dois, nunca mais se encontraram.

 

sábado

Ele é um bom cidadão. Cumpridor. Paga os seus impostos, deita o lixo separado nos receptores coloridos destinados à reciclagem, não bate com a porta do edificio onde habita e não faz ruído depois das vinte e duas horas. Só atravessa nas passadeiras e nos sinais quando emitem luz verde mesmo que não haja trânsito.
 
Esta noite interrompeu o jantar para atender o funcionário do Censos.
 
Convidou-o a entrar mas aquele recusou, entregando-lhe a papelada e apressadamente deu-lhe as informações de carácter geral para o preenchimento. Há mais gente para visitar. Muito trabalho. Combinaram dia e hora para a recolha dos papéis. Qualquer dúvida ficará para esse dia. Nesse dia haverá tempo. Hoje não. Não esta noite, que é só para entregar os impressos e explicar o que fazer.
 
Voltou para o jantar. Frio.
 
Na televisão aconselham ao bom acolhimento dos funcionários do Censos. Do trabalho que fazem. Ele sente-se feliz por ter sido simpático. Por ter interrompido o jantar. Agarra a papelada e inicia a sua leitura e preenchimento. Algumas dúvidas, hesitações, não tem certeza se será assim ou não, melhor deixar para falar com o funcionário no dia combinado.
 
No dia marcado decidiu esperar pelo encontro e só jantar após. Tem hora marcada, não há como errar. Tem os impressos prontos, preparou um tabuleiro com refrescos e umas bolachas, vai convidar o funcionário para entrar.
 
A hora passou e ainda mais meia e só depois apareceu o funcionário do Censos. Ele está um pouco aborrecido. Ele é cumpridor, espera que o sejam consigo. Convida o outro a entrar que se nega. Muito trabalho. Muita gente para visitar. Dúvidas? Umas quantas. Mas a luz da escada é um aborrecimento, sempre a apagar e o tempo que se perde, melhor entrar aqui no hall.
 
Cruzes na folha, mais uma aqui, escreve na outra e o funcionário que não tira os olhos da caixa da electricidade onde está um autocolante do partido, como é que isto lhe foi escapar Santo Deus! Capaz de fazer algum reparo especial na folha do Censos sem ele saber, ficar marcado num registo secreto, vir a policia especial, sabe-se lá! Será que ele viu mesmo o autocolante do partido?! Como está a Mona Lisa por cima... Melhor acabar com isto e pô-lo a andar, muito trabalho, muita gente para visitar.
 
Um passou-bem valente e com a palma da mão esquerda amparou-se ao autocolante desejando muitas felicidades ao funcionário do Censos.

quinta-feira

Já aqui trabalha vai para mês e meio. Veio recomendada. Não é para qualquer um. Qualquer uma. Nos dias que correm. Isto está muito dificil. Com essas empresas todas de limpeza que há por aí e tudo. E tudo. Mas ela é boa no que faz. Ela sabe. Dá uma volta à casa inteira. É só dizer-lhe o que é e ela sabe logo, não são precisas mais explicações nem acompanhamentos nem ir verificar. Não senhora. Ela sabe muito bem. E nada de andar a mexericar onde não deve. Nem meter o nariz onde não é chamada. É por isso que é recomendada. Qualificada, que foi como o patrão que a recomendou para este senhor lhe disse. Você vai, porque eu sei que ele fica servido consigo, você é qualificada.  Foi assim mesmo.
 
Ela foi.
 
Sempre é um dinheirinho extra para os alfinetes. E para o dia da folga.
E desde que não ponha em risco o serviço principal. Na casa onde trabalha para o patrão que a recomendou. Que não põe. Não é ingrata. E foi avisada. Você vai, porque eu sei que você é trabalhadora, mas não me falhe cá em casa. Ela não falha. Ela é certinha.
 
Anda contente. Moída das cruzes mas contente. Desde que seja certa nada falha. E os patrões também estão contentes. Seis dias de labuta e um de folguedo. Não tem conta mais fácil de fazer.
 
Na casa do patrão novo é tudo limpeza ligeira. Pára pouco por lá, rapaz viajado.
Aquilo tem uma garrafeira que só visto. É bebida de toda a qualidade e cor. Ela gosta. Nas folgas bebe sempre um licor. Para tomar ânimo para a semana. Só isso. Já limpou o bar por três vezes. Tirou o pó e passou um pano húmido nas garrafas. Ficaram brilhantes. Bem bonitas. Desarrolhou algumas. Deu umas goladas. Só para saber o que era. Nada de mais. Houve uma de liquido transparente que gostou muito. Muito. Sabe mesmo bem. Cada vez que é dia de limpeza dá um golinho. Pequenino. Pequenininho. E põe a garrafa lá atrás das outras. Depois de a ter reposto com água. Ela não falha. Ela é qualificada.

 

segunda-feira

D.Mariazinha é conhecida de D.Aninhas. Conhecem-se desde o tempo de carteira. Frequentam os mesmos sitios e partilham das mesmas amizades. Nutrem os mesmos gostos pelos bordados e rendas, chás reumatismais e missa dominical das nove.

Ainda assim, o cumprimento não passa de um beijinho e do tratamento distante de minha senhora.
Apesar dos caminhos se cruzarem com a mesma frequência de um familiar próximo.

Porque as duas ainda meninas, competiram para o quadro de honra na escola e porque foram incriminadas do crime de cópia no exame final sem nunca se ter descoberto quem, apesar de se terem acusado mutuamente, o lugar foi dado a uma terceira.

D.Mariazinha não perdoa esta derrota a D.Aninhas.
D.Aninhas não perdoa o enxovalho a D.Mariazinha.

Levaram a vida nesta pendenciazinha sem nunca ter esclarecido ou confessado.Tropeçam uma na outra com o amiúde social e porque a compostura impõe, perante outros nunca se negam à salvação costumeira em que a boa-educação lhes é sempre reconhecida.
 
Porém se o destino as põe no mesmo passeio em dia de mercado, sem outra alma na companhia do braço dado, são exemplares do melhor teatro ao cruzarem os cestinhos e passarem adiante como se nunca houvessem deitado o olho a tal figura semelhante.