Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos) Bernardo Soares, O livro do Desassossego


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terça-feira

Conhecem-se há muito tempo.
Sempre se sentiram bem na companhia um do outro.
Partilham gostos comuns, têm a mesma noção da vida. São ambos livres e desimpedidos, independentes economicamente. Saiem habitualmente duas vezes por semana. Uma para um programa cultural, outra para jantar. Sabem os dois que é mais que uma amizade, mas nunca conversaram sobre o assunto.
Ela espera ansiosamente que ele avance. Dê o primeiro passo nessa direcção.
Ele receia que se levar o assunto por esse caminho, ela se ofenda e  perca a companhia que lhe é tão cara.
Esta semana, no dia do jantar, ela inadvertidamente e no calor da narrativa, segurou-lhe a mão.
Ele, surpreendido pelo gesto, retirou-a.
Ela tomou a atitude como um acto de repulsa.
Pediu-lhe desculpas e lamentou-se pelo resto da noite.
Ele não quis aceitar as explicações dela e disse que quem tinha que se retratar era ele, pela sua postura inaceitável.
Envergonhados os dois, nunca mais se encontraram.

 

sábado

Ele é um bom cidadão. Cumpridor. Paga os seus impostos, deita o lixo separado nos receptores coloridos destinados à reciclagem, não bate com a porta do edificio onde habita e não faz ruído depois das vinte e duas horas. Só atravessa nas passadeiras e nos sinais quando emitem luz verde mesmo que não haja trânsito.
 
Esta noite interrompeu o jantar para atender o funcionário do Censos.
 
Convidou-o a entrar mas aquele recusou, entregando-lhe a papelada e apressadamente deu-lhe as informações de carácter geral para o preenchimento. Há mais gente para visitar. Muito trabalho. Combinaram dia e hora para a recolha dos papéis. Qualquer dúvida ficará para esse dia. Nesse dia haverá tempo. Hoje não. Não esta noite, que é só para entregar os impressos e explicar o que fazer.
 
Voltou para o jantar. Frio.
 
Na televisão aconselham ao bom acolhimento dos funcionários do Censos. Do trabalho que fazem. Ele sente-se feliz por ter sido simpático. Por ter interrompido o jantar. Agarra a papelada e inicia a sua leitura e preenchimento. Algumas dúvidas, hesitações, não tem certeza se será assim ou não, melhor deixar para falar com o funcionário no dia combinado.
 
No dia marcado decidiu esperar pelo encontro e só jantar após. Tem hora marcada, não há como errar. Tem os impressos prontos, preparou um tabuleiro com refrescos e umas bolachas, vai convidar o funcionário para entrar.
 
A hora passou e ainda mais meia e só depois apareceu o funcionário do Censos. Ele está um pouco aborrecido. Ele é cumpridor, espera que o sejam consigo. Convida o outro a entrar que se nega. Muito trabalho. Muita gente para visitar. Dúvidas? Umas quantas. Mas a luz da escada é um aborrecimento, sempre a apagar e o tempo que se perde, melhor entrar aqui no hall.
 
Cruzes na folha, mais uma aqui, escreve na outra e o funcionário que não tira os olhos da caixa da electricidade onde está um autocolante do partido, como é que isto lhe foi escapar Santo Deus! Capaz de fazer algum reparo especial na folha do Censos sem ele saber, ficar marcado num registo secreto, vir a policia especial, sabe-se lá! Será que ele viu mesmo o autocolante do partido?! Como está a Mona Lisa por cima... Melhor acabar com isto e pô-lo a andar, muito trabalho, muita gente para visitar.
 
Um passou-bem valente e com a palma da mão esquerda amparou-se ao autocolante desejando muitas felicidades ao funcionário do Censos.

quinta-feira

Já aqui trabalha vai para mês e meio. Veio recomendada. Não é para qualquer um. Qualquer uma. Nos dias que correm. Isto está muito dificil. Com essas empresas todas de limpeza que há por aí e tudo. E tudo. Mas ela é boa no que faz. Ela sabe. Dá uma volta à casa inteira. É só dizer-lhe o que é e ela sabe logo, não são precisas mais explicações nem acompanhamentos nem ir verificar. Não senhora. Ela sabe muito bem. E nada de andar a mexericar onde não deve. Nem meter o nariz onde não é chamada. É por isso que é recomendada. Qualificada, que foi como o patrão que a recomendou para este senhor lhe disse. Você vai, porque eu sei que ele fica servido consigo, você é qualificada.  Foi assim mesmo.
 
Ela foi.
 
Sempre é um dinheirinho extra para os alfinetes. E para o dia da folga.
E desde que não ponha em risco o serviço principal. Na casa onde trabalha para o patrão que a recomendou. Que não põe. Não é ingrata. E foi avisada. Você vai, porque eu sei que você é trabalhadora, mas não me falhe cá em casa. Ela não falha. Ela é certinha.
 
Anda contente. Moída das cruzes mas contente. Desde que seja certa nada falha. E os patrões também estão contentes. Seis dias de labuta e um de folguedo. Não tem conta mais fácil de fazer.
 
Na casa do patrão novo é tudo limpeza ligeira. Pára pouco por lá, rapaz viajado.
Aquilo tem uma garrafeira que só visto. É bebida de toda a qualidade e cor. Ela gosta. Nas folgas bebe sempre um licor. Para tomar ânimo para a semana. Só isso. Já limpou o bar por três vezes. Tirou o pó e passou um pano húmido nas garrafas. Ficaram brilhantes. Bem bonitas. Desarrolhou algumas. Deu umas goladas. Só para saber o que era. Nada de mais. Houve uma de liquido transparente que gostou muito. Muito. Sabe mesmo bem. Cada vez que é dia de limpeza dá um golinho. Pequenino. Pequenininho. E põe a garrafa lá atrás das outras. Depois de a ter reposto com água. Ela não falha. Ela é qualificada.

 

segunda-feira

D.Mariazinha é conhecida de D.Aninhas. Conhecem-se desde o tempo de carteira. Frequentam os mesmos sitios e partilham das mesmas amizades. Nutrem os mesmos gostos pelos bordados e rendas, chás reumatismais e missa dominical das nove.

Ainda assim, o cumprimento não passa de um beijinho e do tratamento distante de minha senhora.
Apesar dos caminhos se cruzarem com a mesma frequência de um familiar próximo.

Porque as duas ainda meninas, competiram para o quadro de honra na escola e porque foram incriminadas do crime de cópia no exame final sem nunca se ter descoberto quem, apesar de se terem acusado mutuamente, o lugar foi dado a uma terceira.

D.Mariazinha não perdoa esta derrota a D.Aninhas.
D.Aninhas não perdoa o enxovalho a D.Mariazinha.

Levaram a vida nesta pendenciazinha sem nunca ter esclarecido ou confessado.Tropeçam uma na outra com o amiúde social e porque a compostura impõe, perante outros nunca se negam à salvação costumeira em que a boa-educação lhes é sempre reconhecida.
 
Porém se o destino as põe no mesmo passeio em dia de mercado, sem outra alma na companhia do braço dado, são exemplares do melhor teatro ao cruzarem os cestinhos e passarem adiante como se nunca houvessem deitado o olho a tal figura semelhante.

 

quarta-feira

Estava tudo certo, tudo tão bem. Logo havía que vir com imposições. Um ultimatum. Se antes não tinha que escolher para quê agora essa coisa que todos os dias se interpunha como um muro entre eles e devassava a alegria, os risos, os olhares cúmplices, as fugas à hora marcada para o beijo roubado. Porque se fartara, explicava.
Porque não era mais uma brincadeira ou um jogo em que cada um se esconde e acha o outro, sublinhava.
Era daqui. E fechava a mão e batía no osso do peito até se ouvir.
Quería mais, sempre mais e a tempo inteiro. Contava com ele. A menos que para ele não fosse verdadeiro.
Que fosse um homem. Que assumisse. Que lhe desse a mão em frente aos outros, um beijo em público, que contasse à familia que amava outro de seu género.
Tudo isto agora.
Não bastava que o amasse, que o fizesse sentir na forma especial como lho dizía, como lho dizía tantas vezes no silêncio em que o observava de perfil.
Tudo isto para que outros soubessem. Que importam os outros. Não pode. Já explicou que não pode mas ele não quer ouvir. Só quer ouvir que o amor pode tudo e consegue tudo. Não é verdade.
Não é verdade.
É tão verdade não o ser que o vai perder. Já escolheu. Fez-lhe a vontade.

 

domingo

Anda feliz.
Não tem por que não andar.
Depois de várias portas batidas na cara finalmente alguém lhe reconheceu o valor. O devido. Tardou mas chegou.
Mérito seu.
Todo.
Há que reconhecer a arte onde ela existe. O talento onde ele mora. A musa onde se encanta.
Tudo seu.
Trabalho de muitas noites. Muitas horas de pesquisa. Olhos feridos de tanta luz. E tanta compilação.
Juntar tudo. Pedacinho a pedacinho como quem reconstrói qual cirurgião plástico, um pedaço de pele novo. Com outro retirado de outro corpo.
Claro que não foi chegar e retirar. Assim, sem mais nem menos. Pois é. Muito trabalho. Não foi um roubo, se fosse só tirar era um roubo, mas não foi.
Foi estudar. Sim. estudar. Pesquisar. Seleccionar. Algumas palavras foram substituídas por outros sinónimos para não parecerem exactamente a mesma frase completa. Foi tudo muito bem arranjadinho. Isto dá uma trabalheira. É tirar daqui e depois vai-se a outro lado tira-se dali, juntam-se os dois, dá-se-lhe um incremento com uma frasezita nossa para colar a idéia e por aí fora.
Por aí fora.
Muitas noites.
Muita pesquisa.
Não deixar rasto.
Principalmente.
Mas valeu a pena.
E é tudo inocente.
Não faz mal a ninguém.
E faz-se feliz um poeta.
Pronto.
 
 
 

sábado

Barbeado, levemente perfumado, lenço ao pescoço, sapatos reluzentes.
Está pronto.
Não. Faltam duas coisas. O alfinete de ouro e a canadiana.
 
Em vésperas deste dia, embora se deite cedo e tente repousar o mais possível nunca consegue conciliar toda a tranquilidade necessária para aparentar um bom ar. É muita agitação saber que hoje é o dia. Afinal, só se pode dar a este luxo uma vez por mês e tem que aproveitar muito bem todos os momentos.
Depois, já é conhecido. Há uma reputação a manter. Créditos que não se podem desperdiçar. Muito menos perder para outro cavalheiro que decerto ao destroná-lo, nunca mais recuperaría o mérito. Aqui, quem o vê assim, direito, não há-de pensar em todo o trabalho que lhe deu a alcançar tudo isto. Mas deu. E os anos não oferecem perdão.
 
As senhoras hão-de estar ávidas de o rever. Muitas saudades decerto. Passaram trinta dias. É um quebra-corações. Ele sabe. Daqui a nada, o beija-mão. A selecção. Ele é que escolhe. Elas sabem.
 
Tempo de se pôr a caminho.
Até à colectividade ainda é uma boa meia-hora de autocarro. E a ter de fingir que é coxo para lhe darem o lugar sentado ainda demora a chegar à paragem.
 
O que não se faz por uma matiné dançante.
 
 

segunda-feira

Hora de almoço. Dia de semana.
Restaurante repleto, alguns de pé aguardando lugares.
Mesa de cinco, quatro homens e a estagiária.
 
Fala-se de serviço.
Cada um com mais do que o outro. Responsabilidades acrescidas, mais experiência, dúvidas é com ele e com mais ninguém. Essas, porque se falar destas, é com aquele. Contam-se histórias antigas para provar os quilómetros de profissionalismo. Falam-se de nomes como de códigos. Entra-se numa disputa para relatar o episódio mais pitoresco.
 
Ela enfada-se.
Olha ao redor. Pousa os olhos num louro bem vestido. Que também repara nela e lhe sorri. Ela já desligou da conversa da sua mesa e o som que lhe chega é como um ruído de fundo.
 
Tocam-lhe no braço, agarra-lhe na mão.
O colega sentado a seu lado encosta a boca à orelha da estagiária e num tom que permite que todos ouçam diz palhaço. Esse louro é um palhaço. Palhaço mariconço. Todos riem muito alto. Ela afasta a cabeça e sente-se incomodada. Tem vontade de se ir embora.
 
Chega a comida.
A estagiária sente-se nauseada.
As gargalhadas acompanham os adjectivos ao homem louro de forma tão veloz quanto o vinho faz parceria à comida. Um dos profissionais com anos de serviço aponta com a faca para a mesa do homem louro.
 
O homem louro levanta-se.
Deve ter quase dois metros de altura. Caminha em direcção à mesa da estagiária. Ela sente-se a corar e a perder a noção da sala do restaurante. O homem louro agarra a ponta da orelha do colega que está sentado ao lado da estagiária e pede-lhe para repetir que ele é um palhaço mariconço. Os outros baixam a cabeça e devoram o prato.
 
 
 

sexta-feira

A mim ninguém me cala.
Nem me enganam. Basta olhar para alguém uma única vez e sei logo o que se pode esperar.
Experiência de vida. Espirito observador.
Apercebo-me rapidamente quando contam mentiras, quando disfarçam, quando distorcem a realidade. É como que um sexto sentido. Podem aldrabar muita gente mas a mim não me compram.
É por isso que quando falam comigo já sabem que não vale a pena virem contar estórias da carochinha que lhes digo logo. E quando não lhes digo logo, trato de arranjar maneira de eles entenderem que não me enganaram. Numa próxima oportunidade.
Ou então deixo-os aflitos. A remoer. Eles percebem logo que eu sei tudo.
É fácil.
Basta dizer-lhes o que acho. Mas dizendo-lhes que foram outras pessoas que me vieram contar.
Não têm maneira de provar que sou eu que penso assim. E por outro lado ponho-os logo no lugar deles.
Não me enganam.
Quero ver eles dizerem-me na cara que aquilo que eu ouvi e que até lhes faço o favor de contar não é verdade. Que é da minha autoria e que estou a inventar pela boca de outros.
A mim ninguém me cala. Sou muito frontal, o que tenho a dizer digo logo.
Esta é que é a verdade verdadinha.
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quinta-feira

Avisei.
Bastas vezes.
Uma completa e tremenda falta de educação. E principios. Há que respeitar o espaço de cada um.
Ordenadamente. Civicamente.
Tentei a aproximação civilizada, falei, expliquei a situação e as consequências.
Nada.
Tudo se repetiu nos fins de semana.
Deixei uma pequena nota na caixa do correio. Duas. Três, quatro.
Nada, voltou o barulho infernal do rádio do carro, as aceleradelas antes de desligar a ignição, a porta do prédio a bater com toda a força.
Uma falta de consideração.
Às quatro, cinco da manhã. Quando o sono dos justos se concilia até ao erguer para se cumprir o seu dever de cidadão.
Das vezes seguintes apelei às forças de segurança.
Pago os meus impostos, tenho direito a que zelem pelo meu sono.
Mas só vieram por duas vezes. Ocupados a prenderem ladrões, desculparam-se.
Por isso deixei de avisar.
Tirei-lhe o sono como ele mo tirou aos fins de semana pela madrugada.
Ninguém me pode acusar que não tenha sido paciente.
Tão paciente que esperei por ele uma noite inteira, cheio de frio, no vão do prédio, para lhe impedir os pneus do carro voltarem a rolar para outros fins de semana.
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quarta-feira

A idéia não era má de todo.

Com alguns retoques até que sería capaz de se tornar viável. Boa. Pronto: Aproveitável.

Claro que estas coisas não se podem revelar a quem a desenvolveu. Pelo menos no mundo empresarial. Uma selva. Uma competição. Leva a melhor quem for esperto. E esperto é aquele que não revela os segredos todos.

Não tem que se queixar.

Muito menos andar a gritar que a idéia era sua. Era sua em bruto. Apenas pensada, não amadurecida. Melhorada só depois. Com a minha mão, o meu raciocinio, a minha capacidade de ver que depois de trabalhada podería ser uma boa noção. Portanto, choramingar pelos cantos que foi vitima de uma apropriação indevida é pura mentira. Deturpação da realidade e do contexto.

Aliás, quem iría notar que a idéia surgira de um mero rapaz que anda a distribuír o correio?!

Na verdade, aquilo que lhe fiz foi ajudá-lo. Encorajá-lo. Fazer com que acredite em si. Assim há-de trabalhar mais e com mais afinco. Pode ser que chegue aqui. Um dia. Que continue a ter boas idéias. E com algum esforço, para além de as produzir, que consiga desenvolvê-las. Torná-las viável.

Sem isso, nada.

Foi isso que fiz. Agarrar uma idéia e torná-la concretizável.

Coisa que não foi capaz de fazer.
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terça-feira

Um disparate. Incontrolável. Uma bestialidade. Irracional.
De o deixar irracional.
Dos outros na sua situação não sabía o que lhes havía tocado em sorte. Mas ele não. Tudo o que de mau podería existir condensara-se no que lhe havía ido parar a casa.

De ínicio achara-lhe graça. Parecía um boneco com pilhas alcalinas, peludo, desajeitado. E é como dizem: Tudo o que é pequeno tem graça.

Mas à medida do crescimento o aumento proporcional dos estragos, das despesas de veterinário, de comida. A substituição sem hipótese de restauro de móveis, almofadas, fios, sapatos. Já para não falar na pequenez da capacidade de aprender onde fazer as necessidades. Estas sim, cada vez mais e mais odoríferas e sempre nos locais menos apropriados.

Um disparate.

Achar que tê-lo sería uma compensação à solidão. Não. Apenas o mantinha continuadamente ocupado e sempre em tarefas nada agradáveis. De solitário e calmo passara a solitário e uma pilha de nervos.
Ainda podería acrescentar que deixara de ter horas e momentos só para si. Ler o jornal, ficar até tarde na cama eram actividades que pertencíam ao passado. Agora levantava-se ainda noite, com chuva ou sem ela, dobrava-se para apanhar dejectos nauseabundos, a roupa sempre marcada de patadas.

Um disparate.

Concluiu que era ele ou a besta.
Antes só e lúcido do que mal acompanhado e enlouquecido.
Não o podíam julgar. Ele racional, homem.

Levou-o a passear para longe. Muito longe. Tão longe que tiveram de ir de carro.
Fez-lhe a vontade.
Deixou-o urinar em todas as árvores, roer tudo o que conseguiu abocanhar, correr em todas as direcções.
Aquela em que o cão seguiu foi a contrária à que regressou a casa.
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segunda-feira

Pão, leite, um quilo de maçãs. Das reinetas, se faz favor. Gosta do ácido das maçãs reinetas. Mas que não sejam das farinhentas. Gosta de maçãs reinetas com aquele travo ácido mas de textura firme. As outras já passaram de ser comidas. Para ela claro. Pode ser que haja quem goste. Ela não gosta.
Ela sabe muito bem o que quer e do que gosta.
Não, não quer mais nada. Hoje vai só isto. Não, não quer aproveitar os morangos que estão a um preço jeitoso. Pelo tamanho deles devem ser farinhentos por dentro. Não gosta de morangos grandes. Nem de maçãs reinetas farinhentas. Nem de morangos ácidos. Nem de preços de promoção para trazer artigo que depois não consome.
Ela sabe o que quer. Ninguém a engana.
Ela nunca se engana.
Pague-se.
É o pão, o leite e as maçãs. Um quilo.
Quanto é?
Pague-se.
Facilita os trocos.
Dá uma nota grande. Depois os trocados para receber de troco uma nota. Não quer moedas de troco.
Agarra nos sacos com o pão, o leite e o quilo de maçãs reinetas ácidas que não são farinhentas.
Na mão livre recebe a nota.
Sai apressada. Está com pressa. Perdeu muito tempo por causa das maçãs reinetas e dos morangos em promoção.
Acelera o passo até casa.
À porta mete a mão ao bolso e olha a nota.
O merceeiro enganou-se e voltou a retribuír-lhe a nota grande que ela entregara para pagar o pão, o leite e o quilo de maçãs reinetas ácidas. Mas não farinhentas.
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domingo

Lá no fundo tinha-lhe apreço. Reconhecimento. De quando em vez até lhe achava simpatias. Agradinhos. Era tudo uma questão de humores. Satisfeitos.
Dizer que gostava, não, de todo e pensar em afeição sería mesmo um exagero.
Vivia-se. Comodamente.
Era por isso que a tinha pedido em casamento. Comodidade. Garantia de serviços prestados sem a parte dispendiosa do contrato.
Depois ela não devía nada à beleza. E a idade de casar fora-se.
A bem dizer fora um acto de caridade da sua parte pegar nela.
Depois havía também a solidão. Ía-se para velho. Ficar só e doente e sem mãos que lhe valessem sería uma tragédia. E também uma despesa. Tudo pela hora da morte.
De principio lá se sentía impelido a cumprir as obrigações de conjuge. À noite. Ao Sábado. Mas com o passar dos anos foi-se escapando aos poucos a esse martirio dele por cima e ela por baixo. O que gostava mesmo era de uma rapariga que andava na vida e que lhe permitía tudo, mexer em tudo, consolar-se com tudo.
Em casa era diferente. Tinha que se comportar. Ser homem. Ela não se queixava e para ele estava tudo certo.
Desde que as camisas estivessem lavadas e o prato de comida estivesse quente estava-se bem.
Vivia-se. Comodamente.
Por muitos anos que vivessem ela nunca conseguiría retribuír-lhe na mesma medida tanta gratidão.
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sábado

De indicador torcido chamou-o. Por cima dos óculos de ver ao perto. Insistiu. Silenciosamente.
O outro entendeu que não podía escapar-se e obedeceu.
De cabeça ligeiramente tombada à direita. As mãos suadas num aperto. Pousadas frente aos genitais. Recebeu as instruções sem comentários. No final apoiou a ponta dos dedos no tampo da secretária. Mas rápido recolheu o gesto perante o olhar do seu locatário.
Afastou-se.
Da sua secretária efectuou um telefonema. Depois rodou o tronco na direcção do homem que o chamara e fez-lhe um aceno consentido de cabeça. O outro compôs os óculos de ver ao perto.
Na 3ª fila de secretárias um homem sentado de tez amarela recebe um telefonema. Não diz nada. Desliga o telefone sem ruído. Levanta-se. Anda até ao final da sala. Fala baixo com a mulher que está sentada à secretária.
Ela ergue-se impetuosamente.
A cadeira onde estava sentada tomba com estrondo.
Todos se viram na direcção do barulho.
A mulher fala alto, gesticula, chora, faz perguntas.
Ninguém lhe responde. Nem mesmo o homem que está defronte da sua secretária.
Ela empurra-o para o lado.
Caminha apressada.
Dirige-se ao homem de óculos de ver ao perto.
Antes de aí chegar ele tira os óculos de ver ao perto, guarda-os no bolso do casaco e sai da sala.
A mulher fala ainda mais alto.
Depois um grande silêncio.
Todos retomaram o trabalho sentados, calados e virados para a frente.
A mulher faz perguntas e ninguém parece ouvi-la.
Corre para a secretária do homem que sua das mãos.
Ele aponta para o homem de tez amarela.
Ela chama o nome desse homem.
Ele aponta para a secretária do homem que saíu.
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sexta-feira

Logo que lhe telefonou soube que tería que prometer. Embora não quisesse. Só quería trocar meia dúzia de palavras. Ouvir que ela quería conhecê-lo. Pela enésima vez. Só lhe ligava quando mais ninguém o atendía. Já sabía de antemão que a contrapartida era aquele pedido para marcar a data do encontro. E encontros não quería mesmo. Só aquelas frases que o consolavam e fazíam sentir desejado. Especial. Único. Nisso ela era mesmo boa. Tinha frases certeiras. Boas de se ouvir. Muito igual ao efeito que um chapéu de chuva tem quando chove e não há abrigo.
Uma necessidade.
Prometeu mais uma vez o encontro para um futuro próximo.
Mas ela não se contentou.
Exigiu.
Pediu o dia e a hora.
Ele disse.
Pensou que dizer não era estar. Quando chegasse o dia avisaría que não podía ir. Ou outra desculpa. Ou iría e se não gostasse do aspecto dela desaparecería de fininho sem dar as caras. Ela aborrecida não voltaría a pedir mais encontros. Acabavam-se os pedidos. As promessas. A obrigação de dizer um dia.
Afinal só se conhecíam de fotografia tipo passe.
E isso qualquer um pode arranjar a que quiser.
Decidiu que tería de vez de resolver o assunto.
Logo havería de achar outro guarda-chuva se este não servisse mais.
Ou não. Talvez fosse melhor ao vivo do que na fotografia. A fotografia não o entusiasmava por aí além. Normal. Mas a realidade é sempre diferente.
Também não lhe tinha enviado uma fotografia sua. Tinha arranjado a dum tipo bem parecido. Com o cabelo todo. Sem a proeminência do abdómen. Com mais uns centímetros de altura. Sem os anos todos que efectivamente tinha.
Logo que desligou ficou certo que não podería ir.
Nunca mais lhe ligaría.
Nunca mais a atendería quando ela ligasse.
Tinha tido o seu tempo de uso.
Por isso nunca chegou a saber que ela não compareceu ao encontro.
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quinta-feira

O Sr.Pereira está ali para cumprir uma função. Não veio a passeio. A verdade é que detesta este tipo de incumbência. Parece que lhe sai sempre a ele este tipo de missão. Não é fácil. O que tem para comunicar é grave, penoso e inadiável.
Mandaram-no entrar, sentar-se, ficar à vontade.
O Sr.Pereira não veio fazer sala, não tem que ficar à vontade.
Perguntaram-lhe se aceitava uma água, um chá, um café.
Está tudo muito bem assim, mas o café sempre ajudava. Não teve tempo de tomar o pequeno-almoço, é homem sózinho, trata de si, por vezes esquece-se de si. E o emprego tem hora certa de se entrar, não quer saber dessas coisas de se ser sózinho ou acompanhado. Ainda mais com esta visita, não podía de todo atrasar-se.
Deixaram-no na sala, consegue ouvir ao longe os ruídos de louça.
Imagina que com o café venha uns biscoitos. As bolachas de manteiga são as suas favoritas.
O tempo parece que pára quando se está à espera. Ainda mais à espera para depois comunicar tal noticia. Ainda bem que o café lhe vai ser servido antes de a transmitir. Provavelmente não lho serviríam. Ou pior, vingar-se-íam de alguma forma. Bem capaz de lhe cuspirem no café. Ou até mesmo agora. Não, agora não. Não sabem que tipo de noticia é que lhes vai dar. E depois, também não parece coisa deste género de pessoa. A casa é modesta, é certo, mas limpa. Nem se lembraría de tão nojento acto. Cuspir. No café que havería de beber. Vai beber.
Que demora. Tanto tempo para fazer um cafézinho.
Se não vierem bolachas de manteiga não come nenhumas. Sabe-se lá de onde vieram.
Inspira profundamente.
Há um cheiro estranho.
Endireita-se. Ficou mais forte o cheiro. Cheira mal.
Apura as narinas. Não é a café que cheira. Tem a certeza absoluta. Cheira cada vez mais. Quanto mais dobra o tronco na direcção dos joelhos mais intenso fica o cheiro.
Cheira a merda. Descobriu.
Baixa os olhos na direcção dos sapatos polidos. Agarrado de lado no sapato direito tem fezes de cão.
Levanta-se.
Ergue a perna. No tapete alguns pedaços caídos. Exactamente no sitio onde lhe havíam oferecido assento e que ficasse à vontade. E onde espera que lhe tragam o café, de preferência acompanhado de bolachas de manteiga.
Desespera-se.
Esfrega com toda a força o sapato, de lado, de biqueira, de calcanhar, depois em viés, talvez assim acame o empecilho nas fibras do tapete, afaste os pequenos pedaços que se esboroam, disfarce o mau cheiro que empesta toda a sala.
Finalmente o tabuleiro com o café. Não há bolachas de manteiga, só pão e um pote de doce muito amarelo e brilhante.
O Sr. Pereira não brinca em serviço. Leva a mão ao bolso interior do casaco e retira decidido a ordem de despejo.
Pega na pasta, dá os bons-dias e avisa que a casa deverá ser entregue limpa.
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quarta-feira

E a chuva sem parar. Mais um dia de chuva a dar por derrotado todo e qualquer plano. Não há-de vir ninguém com esta chuva, nunca apetece saír. Chato. As estufas, quando é que se poderão abrir as estufas, tanto trabalho de tantos meses para isto. Dinheiro parado, dinheiro perdido. Bem, seja o que Deus quiser, parece que quer chuva. Devía tê-la mandado no tempo dela, agora é excessivo, uma fartura que só estraga e aborrece.
Ainda bem que não vem ninguém.
Com este tempo íam chegar todos enlameados, sujam tudo, a entrada, o living, tudo. Não é deles, não lhes custa, deve ser por isso que em vez de seguirem pelo trilho vêm junto aos canteiros. Não querem saber, arrancam as poucas rosas que têm sobrevivido a este tempo e não querem saber.
Ainda bem que não vem ninguém.
Devíam ter avisado que não vinham, evitavam o levantar cedo, os preparativos na cozinha. Tanta comida, dinheiro empatado. Tem que se congelar tudo. Em pequenas porções, é assim que deve ser feito, não basta pôr no frio, se está de chuva é bem provável que cheguem as trovoadas e depois já se sabe. Azeda tudo, um desperdicio.
E a chuva que não pára.
Já não vem ninguém.
Sería uma excelente oportunidade para pôr a leitura em dia, nunca há tempo. Mas não apetece, é a chuva, a chuva põe as pessoas assim. Sem determinação para muita coisa, para saír de casa por exemplo.
Se tivessem vindo, o tempo estaría ocupado com elas não com outros afazeres ou leituras. Talvez se afastassem das rosas se houvessem cartazes a avisar para não as colher. Esta sería uma boa altura para fazer esses avisos, pô-los junto aos canteiros. E ainda um outro a dizer para seguirem pelo trilho. Mesmo em tempo seco, mesmo sem ser a época das rosas. Já ficava. Para os dias de calor. O pó. Entra por todos os lados, assenta.
O pó e a chuva. Cada um a seu modo fazem estragos. Acabam por ser semelhantes.
Será que há alguém com coragem suficiente para se atrever a saír de casa com esta chuva?
Com os cartazes perde-se o ímpeto de arrancar as rosas, pisar fora do caminho marcado.
Chato.
Ser-se apanhado em transgressão. Mesmo ao pé dos avisos de proibição.
Pelo menos com esta chuva não há ninguém para estragar os canteiros e entrar de botas enlameadas. Do mal o menos. Pior é o dinheiro perdido do dia, a comida, as estufas. A falta de ânimo.
Não há-de vir ninguém, é certo.
Com este tempo e o tempo que já passou desde a hora habitual de chegarem é porque já não vêm.
Tanto melhor.
Adia-se o frete. Com esta chuva não há vontade de aguentar fretes. São tarefas, obrigações. Mas não deixam de ser fretes. Especialmente num dia como o de hoje.
Parece que vem lá alguém. Não. Sim, sim, vem mesmo. Chato. Devería chover o dobro do que a que cai. Isto já não são horas de aparecer. Vem fora dos trilhos. Não. Não, não, não. A rosa mais bonita. Agora não há nada a fazer.
- Entre! Venha para dentro, fuja desta chuva! Que tempo, hein?! Ainda bem que veio! Tenho um enorme prazer em recebê-lo na quinta! Mandei preparar uns acepipes...
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