Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos) Bernardo Soares, O livro do Desassossego


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segunda-feira

Hora de almoço. Dia de semana.
Restaurante repleto, alguns de pé aguardando lugares.
Mesa de cinco, quatro homens e a estagiária.
 
Fala-se de serviço.
Cada um com mais do que o outro. Responsabilidades acrescidas, mais experiência, dúvidas é com ele e com mais ninguém. Essas, porque se falar destas, é com aquele. Contam-se histórias antigas para provar os quilómetros de profissionalismo. Falam-se de nomes como de códigos. Entra-se numa disputa para relatar o episódio mais pitoresco.
 
Ela enfada-se.
Olha ao redor. Pousa os olhos num louro bem vestido. Que também repara nela e lhe sorri. Ela já desligou da conversa da sua mesa e o som que lhe chega é como um ruído de fundo.
 
Tocam-lhe no braço, agarra-lhe na mão.
O colega sentado a seu lado encosta a boca à orelha da estagiária e num tom que permite que todos ouçam diz palhaço. Esse louro é um palhaço. Palhaço mariconço. Todos riem muito alto. Ela afasta a cabeça e sente-se incomodada. Tem vontade de se ir embora.
 
Chega a comida.
A estagiária sente-se nauseada.
As gargalhadas acompanham os adjectivos ao homem louro de forma tão veloz quanto o vinho faz parceria à comida. Um dos profissionais com anos de serviço aponta com a faca para a mesa do homem louro.
 
O homem louro levanta-se.
Deve ter quase dois metros de altura. Caminha em direcção à mesa da estagiária. Ela sente-se a corar e a perder a noção da sala do restaurante. O homem louro agarra a ponta da orelha do colega que está sentado ao lado da estagiária e pede-lhe para repetir que ele é um palhaço mariconço. Os outros baixam a cabeça e devoram o prato.