Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos) Bernardo Soares, O livro do Desassossego


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quarta-feira

A idéia não era má de todo.

Com alguns retoques até que sería capaz de se tornar viável. Boa. Pronto: Aproveitável.

Claro que estas coisas não se podem revelar a quem a desenvolveu. Pelo menos no mundo empresarial. Uma selva. Uma competição. Leva a melhor quem for esperto. E esperto é aquele que não revela os segredos todos.

Não tem que se queixar.

Muito menos andar a gritar que a idéia era sua. Era sua em bruto. Apenas pensada, não amadurecida. Melhorada só depois. Com a minha mão, o meu raciocinio, a minha capacidade de ver que depois de trabalhada podería ser uma boa noção. Portanto, choramingar pelos cantos que foi vitima de uma apropriação indevida é pura mentira. Deturpação da realidade e do contexto.

Aliás, quem iría notar que a idéia surgira de um mero rapaz que anda a distribuír o correio?!

Na verdade, aquilo que lhe fiz foi ajudá-lo. Encorajá-lo. Fazer com que acredite em si. Assim há-de trabalhar mais e com mais afinco. Pode ser que chegue aqui. Um dia. Que continue a ter boas idéias. E com algum esforço, para além de as produzir, que consiga desenvolvê-las. Torná-las viável.

Sem isso, nada.

Foi isso que fiz. Agarrar uma idéia e torná-la concretizável.

Coisa que não foi capaz de fazer.
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terça-feira

Um disparate. Incontrolável. Uma bestialidade. Irracional.
De o deixar irracional.
Dos outros na sua situação não sabía o que lhes havía tocado em sorte. Mas ele não. Tudo o que de mau podería existir condensara-se no que lhe havía ido parar a casa.

De ínicio achara-lhe graça. Parecía um boneco com pilhas alcalinas, peludo, desajeitado. E é como dizem: Tudo o que é pequeno tem graça.

Mas à medida do crescimento o aumento proporcional dos estragos, das despesas de veterinário, de comida. A substituição sem hipótese de restauro de móveis, almofadas, fios, sapatos. Já para não falar na pequenez da capacidade de aprender onde fazer as necessidades. Estas sim, cada vez mais e mais odoríferas e sempre nos locais menos apropriados.

Um disparate.

Achar que tê-lo sería uma compensação à solidão. Não. Apenas o mantinha continuadamente ocupado e sempre em tarefas nada agradáveis. De solitário e calmo passara a solitário e uma pilha de nervos.
Ainda podería acrescentar que deixara de ter horas e momentos só para si. Ler o jornal, ficar até tarde na cama eram actividades que pertencíam ao passado. Agora levantava-se ainda noite, com chuva ou sem ela, dobrava-se para apanhar dejectos nauseabundos, a roupa sempre marcada de patadas.

Um disparate.

Concluiu que era ele ou a besta.
Antes só e lúcido do que mal acompanhado e enlouquecido.
Não o podíam julgar. Ele racional, homem.

Levou-o a passear para longe. Muito longe. Tão longe que tiveram de ir de carro.
Fez-lhe a vontade.
Deixou-o urinar em todas as árvores, roer tudo o que conseguiu abocanhar, correr em todas as direcções.
Aquela em que o cão seguiu foi a contrária à que regressou a casa.
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segunda-feira

Pão, leite, um quilo de maçãs. Das reinetas, se faz favor. Gosta do ácido das maçãs reinetas. Mas que não sejam das farinhentas. Gosta de maçãs reinetas com aquele travo ácido mas de textura firme. As outras já passaram de ser comidas. Para ela claro. Pode ser que haja quem goste. Ela não gosta.
Ela sabe muito bem o que quer e do que gosta.
Não, não quer mais nada. Hoje vai só isto. Não, não quer aproveitar os morangos que estão a um preço jeitoso. Pelo tamanho deles devem ser farinhentos por dentro. Não gosta de morangos grandes. Nem de maçãs reinetas farinhentas. Nem de morangos ácidos. Nem de preços de promoção para trazer artigo que depois não consome.
Ela sabe o que quer. Ninguém a engana.
Ela nunca se engana.
Pague-se.
É o pão, o leite e as maçãs. Um quilo.
Quanto é?
Pague-se.
Facilita os trocos.
Dá uma nota grande. Depois os trocados para receber de troco uma nota. Não quer moedas de troco.
Agarra nos sacos com o pão, o leite e o quilo de maçãs reinetas ácidas que não são farinhentas.
Na mão livre recebe a nota.
Sai apressada. Está com pressa. Perdeu muito tempo por causa das maçãs reinetas e dos morangos em promoção.
Acelera o passo até casa.
À porta mete a mão ao bolso e olha a nota.
O merceeiro enganou-se e voltou a retribuír-lhe a nota grande que ela entregara para pagar o pão, o leite e o quilo de maçãs reinetas ácidas. Mas não farinhentas.
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domingo

Lá no fundo tinha-lhe apreço. Reconhecimento. De quando em vez até lhe achava simpatias. Agradinhos. Era tudo uma questão de humores. Satisfeitos.
Dizer que gostava, não, de todo e pensar em afeição sería mesmo um exagero.
Vivia-se. Comodamente.
Era por isso que a tinha pedido em casamento. Comodidade. Garantia de serviços prestados sem a parte dispendiosa do contrato.
Depois ela não devía nada à beleza. E a idade de casar fora-se.
A bem dizer fora um acto de caridade da sua parte pegar nela.
Depois havía também a solidão. Ía-se para velho. Ficar só e doente e sem mãos que lhe valessem sería uma tragédia. E também uma despesa. Tudo pela hora da morte.
De principio lá se sentía impelido a cumprir as obrigações de conjuge. À noite. Ao Sábado. Mas com o passar dos anos foi-se escapando aos poucos a esse martirio dele por cima e ela por baixo. O que gostava mesmo era de uma rapariga que andava na vida e que lhe permitía tudo, mexer em tudo, consolar-se com tudo.
Em casa era diferente. Tinha que se comportar. Ser homem. Ela não se queixava e para ele estava tudo certo.
Desde que as camisas estivessem lavadas e o prato de comida estivesse quente estava-se bem.
Vivia-se. Comodamente.
Por muitos anos que vivessem ela nunca conseguiría retribuír-lhe na mesma medida tanta gratidão.
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