Amar é cansar-se de estar só: é uma cobardia portanto, e uma traição a nós próprios (importa soberanamente que não amemos) Bernardo Soares, O livro do Desassossego


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sábado

De indicador torcido chamou-o. Por cima dos óculos de ver ao perto. Insistiu. Silenciosamente.
O outro entendeu que não podía escapar-se e obedeceu.
De cabeça ligeiramente tombada à direita. As mãos suadas num aperto. Pousadas frente aos genitais. Recebeu as instruções sem comentários. No final apoiou a ponta dos dedos no tampo da secretária. Mas rápido recolheu o gesto perante o olhar do seu locatário.
Afastou-se.
Da sua secretária efectuou um telefonema. Depois rodou o tronco na direcção do homem que o chamara e fez-lhe um aceno consentido de cabeça. O outro compôs os óculos de ver ao perto.
Na 3ª fila de secretárias um homem sentado de tez amarela recebe um telefonema. Não diz nada. Desliga o telefone sem ruído. Levanta-se. Anda até ao final da sala. Fala baixo com a mulher que está sentada à secretária.
Ela ergue-se impetuosamente.
A cadeira onde estava sentada tomba com estrondo.
Todos se viram na direcção do barulho.
A mulher fala alto, gesticula, chora, faz perguntas.
Ninguém lhe responde. Nem mesmo o homem que está defronte da sua secretária.
Ela empurra-o para o lado.
Caminha apressada.
Dirige-se ao homem de óculos de ver ao perto.
Antes de aí chegar ele tira os óculos de ver ao perto, guarda-os no bolso do casaco e sai da sala.
A mulher fala ainda mais alto.
Depois um grande silêncio.
Todos retomaram o trabalho sentados, calados e virados para a frente.
A mulher faz perguntas e ninguém parece ouvi-la.
Corre para a secretária do homem que sua das mãos.
Ele aponta para o homem de tez amarela.
Ela chama o nome desse homem.
Ele aponta para a secretária do homem que saíu.
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sexta-feira

Logo que lhe telefonou soube que tería que prometer. Embora não quisesse. Só quería trocar meia dúzia de palavras. Ouvir que ela quería conhecê-lo. Pela enésima vez. Só lhe ligava quando mais ninguém o atendía. Já sabía de antemão que a contrapartida era aquele pedido para marcar a data do encontro. E encontros não quería mesmo. Só aquelas frases que o consolavam e fazíam sentir desejado. Especial. Único. Nisso ela era mesmo boa. Tinha frases certeiras. Boas de se ouvir. Muito igual ao efeito que um chapéu de chuva tem quando chove e não há abrigo.
Uma necessidade.
Prometeu mais uma vez o encontro para um futuro próximo.
Mas ela não se contentou.
Exigiu.
Pediu o dia e a hora.
Ele disse.
Pensou que dizer não era estar. Quando chegasse o dia avisaría que não podía ir. Ou outra desculpa. Ou iría e se não gostasse do aspecto dela desaparecería de fininho sem dar as caras. Ela aborrecida não voltaría a pedir mais encontros. Acabavam-se os pedidos. As promessas. A obrigação de dizer um dia.
Afinal só se conhecíam de fotografia tipo passe.
E isso qualquer um pode arranjar a que quiser.
Decidiu que tería de vez de resolver o assunto.
Logo havería de achar outro guarda-chuva se este não servisse mais.
Ou não. Talvez fosse melhor ao vivo do que na fotografia. A fotografia não o entusiasmava por aí além. Normal. Mas a realidade é sempre diferente.
Também não lhe tinha enviado uma fotografia sua. Tinha arranjado a dum tipo bem parecido. Com o cabelo todo. Sem a proeminência do abdómen. Com mais uns centímetros de altura. Sem os anos todos que efectivamente tinha.
Logo que desligou ficou certo que não podería ir.
Nunca mais lhe ligaría.
Nunca mais a atendería quando ela ligasse.
Tinha tido o seu tempo de uso.
Por isso nunca chegou a saber que ela não compareceu ao encontro.
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quinta-feira

O Sr.Pereira está ali para cumprir uma função. Não veio a passeio. A verdade é que detesta este tipo de incumbência. Parece que lhe sai sempre a ele este tipo de missão. Não é fácil. O que tem para comunicar é grave, penoso e inadiável.
Mandaram-no entrar, sentar-se, ficar à vontade.
O Sr.Pereira não veio fazer sala, não tem que ficar à vontade.
Perguntaram-lhe se aceitava uma água, um chá, um café.
Está tudo muito bem assim, mas o café sempre ajudava. Não teve tempo de tomar o pequeno-almoço, é homem sózinho, trata de si, por vezes esquece-se de si. E o emprego tem hora certa de se entrar, não quer saber dessas coisas de se ser sózinho ou acompanhado. Ainda mais com esta visita, não podía de todo atrasar-se.
Deixaram-no na sala, consegue ouvir ao longe os ruídos de louça.
Imagina que com o café venha uns biscoitos. As bolachas de manteiga são as suas favoritas.
O tempo parece que pára quando se está à espera. Ainda mais à espera para depois comunicar tal noticia. Ainda bem que o café lhe vai ser servido antes de a transmitir. Provavelmente não lho serviríam. Ou pior, vingar-se-íam de alguma forma. Bem capaz de lhe cuspirem no café. Ou até mesmo agora. Não, agora não. Não sabem que tipo de noticia é que lhes vai dar. E depois, também não parece coisa deste género de pessoa. A casa é modesta, é certo, mas limpa. Nem se lembraría de tão nojento acto. Cuspir. No café que havería de beber. Vai beber.
Que demora. Tanto tempo para fazer um cafézinho.
Se não vierem bolachas de manteiga não come nenhumas. Sabe-se lá de onde vieram.
Inspira profundamente.
Há um cheiro estranho.
Endireita-se. Ficou mais forte o cheiro. Cheira mal.
Apura as narinas. Não é a café que cheira. Tem a certeza absoluta. Cheira cada vez mais. Quanto mais dobra o tronco na direcção dos joelhos mais intenso fica o cheiro.
Cheira a merda. Descobriu.
Baixa os olhos na direcção dos sapatos polidos. Agarrado de lado no sapato direito tem fezes de cão.
Levanta-se.
Ergue a perna. No tapete alguns pedaços caídos. Exactamente no sitio onde lhe havíam oferecido assento e que ficasse à vontade. E onde espera que lhe tragam o café, de preferência acompanhado de bolachas de manteiga.
Desespera-se.
Esfrega com toda a força o sapato, de lado, de biqueira, de calcanhar, depois em viés, talvez assim acame o empecilho nas fibras do tapete, afaste os pequenos pedaços que se esboroam, disfarce o mau cheiro que empesta toda a sala.
Finalmente o tabuleiro com o café. Não há bolachas de manteiga, só pão e um pote de doce muito amarelo e brilhante.
O Sr. Pereira não brinca em serviço. Leva a mão ao bolso interior do casaco e retira decidido a ordem de despejo.
Pega na pasta, dá os bons-dias e avisa que a casa deverá ser entregue limpa.
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quarta-feira

E a chuva sem parar. Mais um dia de chuva a dar por derrotado todo e qualquer plano. Não há-de vir ninguém com esta chuva, nunca apetece saír. Chato. As estufas, quando é que se poderão abrir as estufas, tanto trabalho de tantos meses para isto. Dinheiro parado, dinheiro perdido. Bem, seja o que Deus quiser, parece que quer chuva. Devía tê-la mandado no tempo dela, agora é excessivo, uma fartura que só estraga e aborrece.
Ainda bem que não vem ninguém.
Com este tempo íam chegar todos enlameados, sujam tudo, a entrada, o living, tudo. Não é deles, não lhes custa, deve ser por isso que em vez de seguirem pelo trilho vêm junto aos canteiros. Não querem saber, arrancam as poucas rosas que têm sobrevivido a este tempo e não querem saber.
Ainda bem que não vem ninguém.
Devíam ter avisado que não vinham, evitavam o levantar cedo, os preparativos na cozinha. Tanta comida, dinheiro empatado. Tem que se congelar tudo. Em pequenas porções, é assim que deve ser feito, não basta pôr no frio, se está de chuva é bem provável que cheguem as trovoadas e depois já se sabe. Azeda tudo, um desperdicio.
E a chuva que não pára.
Já não vem ninguém.
Sería uma excelente oportunidade para pôr a leitura em dia, nunca há tempo. Mas não apetece, é a chuva, a chuva põe as pessoas assim. Sem determinação para muita coisa, para saír de casa por exemplo.
Se tivessem vindo, o tempo estaría ocupado com elas não com outros afazeres ou leituras. Talvez se afastassem das rosas se houvessem cartazes a avisar para não as colher. Esta sería uma boa altura para fazer esses avisos, pô-los junto aos canteiros. E ainda um outro a dizer para seguirem pelo trilho. Mesmo em tempo seco, mesmo sem ser a época das rosas. Já ficava. Para os dias de calor. O pó. Entra por todos os lados, assenta.
O pó e a chuva. Cada um a seu modo fazem estragos. Acabam por ser semelhantes.
Será que há alguém com coragem suficiente para se atrever a saír de casa com esta chuva?
Com os cartazes perde-se o ímpeto de arrancar as rosas, pisar fora do caminho marcado.
Chato.
Ser-se apanhado em transgressão. Mesmo ao pé dos avisos de proibição.
Pelo menos com esta chuva não há ninguém para estragar os canteiros e entrar de botas enlameadas. Do mal o menos. Pior é o dinheiro perdido do dia, a comida, as estufas. A falta de ânimo.
Não há-de vir ninguém, é certo.
Com este tempo e o tempo que já passou desde a hora habitual de chegarem é porque já não vêm.
Tanto melhor.
Adia-se o frete. Com esta chuva não há vontade de aguentar fretes. São tarefas, obrigações. Mas não deixam de ser fretes. Especialmente num dia como o de hoje.
Parece que vem lá alguém. Não. Sim, sim, vem mesmo. Chato. Devería chover o dobro do que a que cai. Isto já não são horas de aparecer. Vem fora dos trilhos. Não. Não, não, não. A rosa mais bonita. Agora não há nada a fazer.
- Entre! Venha para dentro, fuja desta chuva! Que tempo, hein?! Ainda bem que veio! Tenho um enorme prazer em recebê-lo na quinta! Mandei preparar uns acepipes...
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